ecocidadania e avenidas marginais
Prolongamento da avenida Trabalhador São-carlense ao lado do córrego Tijuco-Preto
APASC, Prefeitura e Ministério Público chegam num acordo para continuidade na implantação de uma pista da avenida Trabalhador São-Carlense entre as ruas Rui Barbosa e Miguel Giometti
Desde 1965 que o Código Florestal Brasileiro proíbe a degradação das áreas de preservação permanente ao longo de cursos d’água (no campo e nas cidades) para implantação de avenidas marginais.
Contudo, a ocupação dos fundos de vale com pistas nas duas margens de córregos ou rios – muitas vezes até mesmo tamponando os rios, foram – e muitas cidades abrasileiras inda são até os dias de hoje – a forma mais corriqueiras de ‘melhorar’ o tráfego urbano até o final do século passado. Colocadas nas áreas de inundação dos córregos e rios urbanos (muitas vezes em cima mesmo) estas vias marginais (à margem das leis e dos rios) degradam a qualidade de vida urbana, comprometendo a paisagem e a biodiversidade e favorecendo enchentes, erosão do solo e, consequentemente, acidentes de trânsito.
Ação Civil Pública
Em 1995, quando a Prefeitura Municipal à época (administração Rubens Massucio) iniciou as obras para implantação da segunda pista da avenida marginal ao rio Monjolinho (avenida Francisco Pereira Lopes) que daria acesso ao Shopping Center Iguatemi, a Associação para Proteção Ambiental de São Carlos (APASC) apresentou uma representação ao Ministério Público estadual solicitando o impedimento das obras pois elas estavam sendo executadas sem o legalmente necessário licenciamento ambiental, uma vez que as obras exigiam supressão de vegetação em área de preservação permanente.
Com a recusa à época do Ministério Público do Estado de São Paulo tomar providência legais em defesa do meio ambiente e da legislação ambiental, a APASC tomou a decisão de ela mesma propor uma Ação Civil Pública Ambiental contra a Prefeitura Municipal de São Carlos pela realização das obras ao arrepio da lei. Essa Ação – é importante ressaltar – só foi possível devido ao intenso trabalho voluntário do ainda apenas estudante de direito, hoje advogado e mestre em direito ambiental, Dr. Rodrigo Andreotti Musetti, e com a contribuição fundamental do Dr. Gentil de Brito, que foi o advogado que efetivamente assinou a petição inicial.
Como as obras de ‘melhoria’ do tráfego se expandiram para as margens do córrego do Gregório e do Tijuco-Preto, elas também compuseram essa Ação Civil Púbica que fundamentalmente pedia: a) que nenhuma outra obra junto a áreas de preservação permanente às margens de córregos ou rios fossem executadas sem o devido processo de licenciamento ambiental junto aos órgãos públicos competentes; b) minimização dos danos causados e compensações ambientais para recuperação parcial dos danos causados. Ou seja, a Ação Civil Pública não pedia a destruição das obras já realizadas e a recuperação total das áreas de preservação permanente degradadas. A APASC receava não ser entendida pela maioria da população em virtude de não dispor de meios de comunicação para esclarecimento da população, uma vez que o status quo econômico e cultural dominantes mostram (visão quase hegemônica até os dias atuais) as avenidas marginais como símbolo da modernidade e progresso que facilitam a vida e melhoram o tráfego urbano.
Em primeira instância, na Comarca de São Carlos, a APASC teve suas pretensões frustradas, tendo usado todos os meios legais para a continuidade da Ação, cujo recurso chegou até o Superior Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Em novembro do ano 2000 foi publicado o Acórdão do STJ-SP dando ganho à APASC nessa Ação Civil Pública contra a Prefeitura Municipal de São Carlos por ela implantar avenidas marginais em área de preservação permanente sem o devido licenciamento ambiental.
O TAC das Marginais
A administração do Prefeito Newton Lima Neto, que assumiu a Prefeitura em 2001, decidiu não recorrer da sentença do STJ-SP, nem tomar medidas protelatórias e para cumprimento da sentença expressa no referido Acórdão. Depois de longa negociação entre APASC, Prefeitura, Ministério Público e COMDEMA–SC, foi firmado um Termo de Ajustamento de Conduta para cumprimento da decisão judicial, conhecido como TAC das Marginais.
Essa sentença e o TAC das Marginais foram pioneiros em ações judiciais contra a ocupação de áreas de preservação permanente em regiões urbanas para implantação de avenidas marginais, contribuindo para firmar jurisprudência que tem ajudado a promover relevante mudança na cultura socioambiental das cidades brasileiras.
O TAC das Marginais é, fundamentalmente, composto por compromissos gerais assumidos pela Prefeitura Municipal de São Carlos – como, p.ex., o de não aprovar projetos de empreendimentos que desrespeitem a conservação de áreas de preservação permanente – e de compromissos específicos de conservação ou recuperação ambiental em relação a inúmeros trechos ao longo dos córregos do Gregório, Tijuco Preto e do rio Monjolinho que tiveram sua caracterização, diagnóstico e ações necessárias para melhoria ambiental devidamente previstas.
O TAC das Marginais foi definitivamente firmado em 2005, mas desde 2001 nenhum novo loteamento implantado no município deixou de respeitar os trina metros (30m) de áreas de preservação permanente ao longo de cada uma das margens de eventual curso d’água natural que passe na área do empreendimento. Semestralmente a Prefeitura Municipal de São Carlos está obrigada a emitir um relatório que expresse como ela vem cumprindo o TAC.
Um ponto relevante estabelecido no TAC das Marginais foi o que determina que eventuais vias de tráfego já previstas e aprovadas em processos de empreendimentos no município, essenciais para dar acesso a lotes já comercializados, mas que ainda não haviam sido – por quaisquer motivos – implantados, poderiam ter sua execução autorizada, mesmo estando em área de preservação permanente. Nestes casos, foram previstas compensações ambientais.
Para os que residem na cidade há mais de 15 anos e tenham por hábito observar as margens de nossos córregos urbanos, não deve ter passado despercebido o repovoamento de árvores e, em alguns casos, de matas ao longo de suas margens. O Parque da Chaminé, às margens do córrego do Gregório – que preservou a antiga chaminé da Indústria Fachina, do início do século XX – foi um dos itens previstos no TAC das Marginais.
O Prolongamento da Avenida Trabalhador São-Carlense entre as ruas Rui Barbosa e Miguel Giometti.
O trecho referente às margens do córrego do Tijuco-Preto entre as rua Rui Barbosa e a avenida Miguel Giometti era um dos que já tinham sofrido alguma intervenção (inclusive um tamponamento do córrego), mas não havia ainda nenhuma pista de tráfego implantada. Contudo, constitui-se no final de algumas ruas do Jardim Macarengo e acesso (ainda que feito por terra, sem pista oficial implantada) para algumas residências. Face a essas circunstâncias, o TAC das Marginais originalmente previu a possibilidade de abertura de uma pista com duas faixas ao lado esquerdo do córrego, o que não ocorreu até a presente data, principalmente por falta de recursos e prioridade urbanística.
Poucos anos depois, por volta de 2008, em virtude de possível implantação de empreendimentos habitacionais na área da antiga indústria de doces Hero (não implementada por dificuldades dos empreendedores), foi estabelecido um acordo entre a APASC e Prefeitura, inclusive apreciado e aprovado pelo COMDEMA-SC, no qual a proposta original para implantação de vias de tráfego no trecho em questão foi modificada ampliando áreas de preservação e mudando a implantação das duas faixas de uma mesma pista para o lado direito da margem do córrego do Tijuco Preto. Entretanto, esse acordo não chegou a ser judicialmente aditado ao TAC das Marginais, formalidade necessária uma vez que a implementação do TAC das Marginais se constitui no cumprimento da sentença do STJ-SP na Ação Civil Pública da APASC.
Em 2016, a Prefeitura Municipal de São Carlos submeteu ao licenciamento junto à Companhia Ambiental do Estado de São Paulo, CETESB, um projeto de implantação do prolongamento da avenida marginal ao córrego Tijuco Preto entre a rua Rui Barbosa e avenida Miguel Giometti, conforme o acordo feito com a APASC – mas não formalizado junto à Justiça – quase 10 anos passados.
Além de negligenciar a formalização junto ao Judiciário, a Prefeitura também não comunicou à Coordenadoria do Meio Ambiente e ao COMDEMA-SC o pedido de licenciamento junto à CETESB. Surpreendentemente, a CETESB emitiu licença autorizando a obra e a Prefeitura Municipal de São Carlos, no segundo semestre de 2017, na Administração Aírton Garcia Ferreira, iniciou as obras sem comunicar ao COMDEMA-SC e sequer, segundo palavras do Coordenador de Meio Ambiente, Prof. Dr. José Galizia Tundisi, a própria Coordenadoria de Meio Ambiente Municipal. Questionado sobre essas obras, em reunião ordinária do COMDEMA-SC de novembro de 2017, pelo conselheiro da USP, Prof. Dr. Marcel Fantin, o Prof. Dr. José Galiza Tundisi afirmou nada saber a respeito das mesmas.
Com as obras em execução, choveram denúncias à APASC, ao COMDEMA-SC e ao Ministério Público questionando sua legalidade. O Ministério Público do Estado de São Paulo, através do promotor Sérgio Domingos de Oliveira, verificando que as obras em execução não estavam de acordo com o legalmente estabelecido no TAC das Marginais, solicitou ao Município imediata paralisação das obras, o que foi prontamente atendido. Chamou, então, para esclarecimentos, reuniões com a APASC e a Prefeitura para entender o que se passava.
O Acordo para Aditamento do TAC das Marginais e Retomada das Obras
Constatando-se que a Prefeitura havia obtido autorização da CETESB, mas que esta encontrava-se em desacordo com o TAC das Marginais original e em vigor e, ainda, que havia um acordo anterior, não formalizado, para alteração do TAC das Marginais, fez claro a necessidade de promover um aditamento ao TAC das Marginais com base em novo acordo.
Observando-se que nas condições atuais da área em questão (trecho do córrego do Tijuco Preto entre as ruas Rui Barbosa e Miguel Giometti) já havia significativa recuperação florestal de mata ciliar em alguns trechos e a existência de nascentes marginais em processos de degradação, definiu-se que a Prefeitura desistiria de implantar duas pistas, como autorizado pela CETESB, mas uma única pista para dar maior distanciamento possível do leito do córrego. Literalmente assim expressa o item 5.2 do Termo de Aditamento firmado:
“ 5.2 Ainda em retificação, o Município assume a obrigação de não mais fazer as duas pistas paralelas anteriormente previstas no respectivo mapa das fls. 993 dos autos da referida ACP e descritas nesse item 2.1.5 do TAC, mas apenas essa única pista do lado esquerdo do córrego e o pequeno trecho de adaptação mencionado, observando o padrão de via coletora de mão dupla, conforme previsto no art. 120 do Plano Diretor do Município….;”
Para os membros da APASC e para o Ministério Público ficou evidente que a proposta acordada em fevereiro de 2018, ficou, do ponto de vista ambiental e para a qualidade de vida da população de São Carlos, muito melhor que o originalmente previsto no TAC das Marginais (duas pistas), e melhor que o acordo anterior e autorizado pela CETESB (duas pistas).
Evidente que, do ponto de vista ambiental, o ideal seria o destamponamento do córrego naquele trecho e a completa recuperação das matas ciliares pelo menos nos 30 metros de área de preservação permanente do córrego. Contudo, não era o previsto no TAC das Marginais e ainda não há condições sociais, econômicas e culturais que permitam que o Município faça os investimentos necessários para uma completa renaturalização do córrego do Tijuco Preto. Seria maravilhoso que esse sonho de ‘libertação’ de nossos rios urbanos fosse possível – como já acontece em algumas cidades do planeta – e, quiçá, em breve esse será um anseio da maioria da população e economicamente viável. Por enquanto, temos que nos contentar com pequenos avanços e compensações ambientais que minoram a degradação histórica de nosso ambiente urbano.
Todos os outros itens do TAC das Marginais foram mantidos inalterados.
O Desempenho dos Órgãos Públicos Ambientais do Estado e do Município
É importante questionar por que o órgão ambiental do Estado de São Paulo atualmente competente para o licenciamento de obras junto a áreas de preservação permanente – a CETESB – ignorou a existência do TAC das Marginais e a necessidade de suas diretivas serem cumpridas. O pedido de autorização para realização das obras tem que ser necessariamente acompanhado de um parecer do órgão ambiental do município. Ele foi feito? Se positivo, pergunta-se: neste parecer o órgão ambiental municipal informou à CETESB a existência do TAC das Marginais?
Por outro lado é mister ressaltar que em nenhum momento das negociações entre a APASC, o Ministério Público e a atual Administração do Prefeito Aírton Garcia Ferreira, houve a participação do Coordenador de Meio Ambiente, Prof. Dr. José Galizia Tundisi, ou mesmo de qualquer técnico da citada Coordenadoria. Lembremos que o Prof. Dr. José Galizai Tundisi é uma das maiores autoridades científicas nacionais – internacionalmente reconhecido – em recursos hídricos. Pela Prefeitura, participaram, além do vice-prefeito e Secretário Municipal de Habitação e Desenvolvimento Urano, Eng. Giuliano Cardinali, o Secretário Municipal de Obras Públicas e outros técnicos destas duas secretarias.
Por que então a Administração não comunicou aos órgãos ambientais do município o licenciamento e a execução da referida obra e nem convocou seus técnicos – o que teriam maior competência técnica e legal para tratar do tema – para as negociações com o Ministério Público e a APASC?
Seria legítimo e necessário que a Prefeitura antes da confirmação do acordo para assinatura do Termo de Aditamento do TAC das Marginais, ouvisse – como determina a legislação municipal – seu órgão colegiado para os assuntos de relevância ambiental: o Conselho Municipal de Defesa do Meio Ambiente (COMDEMA-SC).
Não é a primeira vez que oficialmente a atual Administração ignora – em temas de extrema relevância ambiental – tanto a Coordenadoria de Meio Ambiente como seu órgão colegiado (COMDEMA-SC) – que garante transparência e participação da comunidade nas decisões sobre políticas e ações ambientais, conforme prevê a Constituição Federal.
Esperamos que esse comportamento mude. Dessa maneira ela continuará trombando com a sociedade, com o ambiente e, legalmente, como as avenidas, continuará ‘marginal’.
São Carlos, 20 fevereiro de 2018